11 de agosto de 2010

Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio

8 comentários:

maria teresa disse...

Adoro este poema!
Oiço-o vezes sem conta, no adocicado da voz da Maria Bethânia...
Eu também sei, felizmente, que por "aí não vou!"
Abracinho

João Roque disse...

O "Cântico Negro" associo-o naturalmente a Régio, e a Portalegre (julgavas que me esquecia?) e também a uma voz, que não a de Betânia, por muito que concorde com a Maria Teresa.
Mas a voz a que me refiro é a do João Villaret!!!

Mike disse...

Maria Teresa, não conhecia essa "versão" da Maria Bethania e fui procurar. (a internet é maravilhosa)
O poema é bonito de qualquer maneira (é Régio, ponto!), mas gostei de ouvir na voz da MB.
Beijinho.

Mike disse...

João, tu que te atrevesses a esquecer...levavas uma valente tareia. ehehe ;-)
Também conheço com o João Villaret a interpretar o poema.
Mas tenho o privilégio ( e a sorte) de ter o registo do próprio Régio a dizer este poema.
Faz parte de um CD (de edição bastante limitada) feito a partir de bobines de fita onde Régio gravou a sua voz a dizer alguns dos seus poemas. Essa bobines foram recuperadas com recurso aos meios digitais que existem hoje e foi feito o cd, com cerca de 12 poemas. É uma preciosidade.
(pode-se arranjar se quiseres :-) )

Anónimo disse...

Isso é uma preciosidade, não fazia ideia de que tal existia. (Partilhar é bonito... cof cof)

Mike disse...

Humming, isso é tosse?! ;-)

Anónimo disse...

:) É aqui o catarro da invejite.

João Roque disse...

Claro que quero, mas isso pergunta-se?