Na confusão do mundo, um rapaz sobe a rua. O Interior é igual em toda a parte.
Mas hoje vai mudar. Ele traz um segredo terrível no bolso do kispo.
Faz calor na província dos suicidas. Dá vontade de rir: uma cidade em que até o coveiro se mata... São estatísticas, tudo em números.
Na Internet, há sexo e doidos japoneses e americanos para conversar em directo. No campo, granadas e ervas venenosas. No prédio, um jovem assassino toca órgão.
O space-shuttle leva cortiça do Alentejo para o Espaço. O Bispo viu o maior massacre da guerra de África e calou-se.
Mas hoje vai responder. Os factos verdadeiros são os piores.
O amor do rapaz rebentou. Que responsabilidades temos quando nada fizemos?
Em que fado parámos, onde fica Portugal?
Este é um excerto do livro de José Cardoso Martins, "E se eu gostasse muito de morrer".
Um romance, que de romance tem pouco, dada a realidade dos factos e dos nomes de pessoas e locais (alterados por motivos óbvios no livro).
Uma realidade que quase parece irreal de tão absurda que é.
Um romance onde se cruzam várias histórias sobre suicídios, homicídios, acidentes e outros acontecimentos estranhos. Um denominador comum: a morte.
Um livro muito interessante com uma bela escrita.
Fica a sugestão.
Sobre este livro encontrei aqui um artigo que explica muito bem no que se baseiam as histórias e muito do que está por detrás de cada uma delas, que transcrevo em baixo.
"O enigma da elevada percentagem de suicídios no sul do País é o pretexto de onde parte Rui Cardoso Martins para o seu soberbo romance “E se eu gostasse muito de morrer” (Publicações Dom Quixote, 2007). Os putos estão a jogar à bola (os putos são o Trombeiro, o Tonel, talvez o Besta Porca, o Perneta, o Pipas, o Ganso, o Cruzeta, entre outros, o que logo nos lembra a atmosfera do Bairro Alto magistralmente registada no romance de Dinis Machado “ O que diz Molero”), quando descobrem o cadáver do coveiro, o primeiro suicida a entrar em cena. Estamos no Alto Alentejo, mais propriamente em Portalegre. O autor, para efeitos deste romance, é o Cruzeta, voltou à sua infância, aos seus tempos de estudante, vai rememorar situações limite, comportamentos tidos por bizarros ou aberrantes, envolvendo sepulturas, venenos rápidos, enforcamentos. O suicídio é mesmo um pretexto para chegar aos códigos da interioridade: está-se longe de tudo, aí a solidão é miséria, é abandono, é indiferença dos do nosso sangue que partiram para sempre. Quem fica, está marcado por múltiplos estigmas, defende-se com o álcool, esconde os fracassos, embrutece, pratica inverosímeis, injustificáveis crimes passionais. Por vezes, o suicida vem até Lisboa e atira-se da ponte 25 de Abril.
A interioridade vive dos problemas comunitários, das mais desvairadas ofertas para se chegar ao desenvolvimento. O Liceu foi uma oferta dos suecos. É betão e vidro, pelo que no Verão não se aguenta o calor e no Inverno é inferno. Na interioridade as pessoas desesperam perante um tempo que corre sem sentido. A interioridade tem cães gigantescos, filhos repudiados, desafia-se a velocidade, arrisca-se a vida, mata-se porque não há mais a fazer. É o caso do Zé Carlos que esfaqueou a professora Catarina só para que os pais não soubessem que ele mentia acerca de sucessos inexistentes. A interioridade provoca crueldades, as crianças vingam-se nos animais, a urgência dos hospitais enche-se de desastres e os adolescentes desafiam o senhor Bispo a falar da cumplicidade da Igreja com os crimes da guerra colonial.
A interioridade é um estado de espírito, mesmo com bispado, a fronteira de Espanha perto, diversões, agricultores ricos, pobres e remediados, caixas de multibanco, proprietários ricos a ameaçar deserdar filhos blasfemos. Aquela interioridade que nos fala Rui Cardoso Martins tem tapeçarias valorosíssimas, seminaristas que lêem revistas pornográficas ali nasceu o poeta José Duro, viveu José Régio, ali há janelas manuelinas, ali se procura vencer do isolamento graças à Internet.
“E se eu gostasse muito de morrer” não é só escrita primorosa, é um duro libelo onde se manifestam os excluídos de toda a interioridade portuguesa, os que não se matam e enganam o aborrecimento de viver, fantasiando maluqueiras, radicalismos e sucessivos tormentos para desafiar o infinito. De permeio, morre-se de amor, vive-se como um bispo e quando se tem sorte foge-se da parvónia, vem-se até à capital. O romance é uma viagem alucinante aos confins da memória, insiste-se que Portalegre é um pretexto para o autor recuperar a identidade perdida e lembrar-nos que nos confins de Portugal se vive seja o desespero seja a suspirar pela partida. Porque o encadeado de suicídios, corpos mutilados e a exibição de venenos não passam de metáforas: morre-se, gosta-se de morrer porque não se é livre, porque não se pode optar entre ficar e partir. Mas além disso, o autor desenvolve uma tocante elegia, de grande elegância, sobre a infância e adolescência que nos recorda ter existido. Na literatura, como na vida, que sai aos seus não degenera. Lobo Antunes classificou este romance como uma grande promessa. Podemos ir mais longe: testemunha como a língua portuguesa se revigora aprofundando o local com o global, o regional com o universal. Esta interioridade é o tormento que travamos connosco, a acusação de que crescemos no litoral esquecendo mais de metade do país. É uma grande promessa e um grande estímulo para a renovação da nossa escrita, aqui confirmada."
Mas hoje vai mudar. Ele traz um segredo terrível no bolso do kispo.
Faz calor na província dos suicidas. Dá vontade de rir: uma cidade em que até o coveiro se mata... São estatísticas, tudo em números.
Na Internet, há sexo e doidos japoneses e americanos para conversar em directo. No campo, granadas e ervas venenosas. No prédio, um jovem assassino toca órgão.
O space-shuttle leva cortiça do Alentejo para o Espaço. O Bispo viu o maior massacre da guerra de África e calou-se.
Mas hoje vai responder. Os factos verdadeiros são os piores.
O amor do rapaz rebentou. Que responsabilidades temos quando nada fizemos?
Em que fado parámos, onde fica Portugal?
Este é um excerto do livro de José Cardoso Martins, "E se eu gostasse muito de morrer".
Um romance, que de romance tem pouco, dada a realidade dos factos e dos nomes de pessoas e locais (alterados por motivos óbvios no livro).
Uma realidade que quase parece irreal de tão absurda que é.
Um romance onde se cruzam várias histórias sobre suicídios, homicídios, acidentes e outros acontecimentos estranhos. Um denominador comum: a morte.
Um livro muito interessante com uma bela escrita.
Fica a sugestão.
Sobre este livro encontrei aqui um artigo que explica muito bem no que se baseiam as histórias e muito do que está por detrás de cada uma delas, que transcrevo em baixo.
"O enigma da elevada percentagem de suicídios no sul do País é o pretexto de onde parte Rui Cardoso Martins para o seu soberbo romance “E se eu gostasse muito de morrer” (Publicações Dom Quixote, 2007). Os putos estão a jogar à bola (os putos são o Trombeiro, o Tonel, talvez o Besta Porca, o Perneta, o Pipas, o Ganso, o Cruzeta, entre outros, o que logo nos lembra a atmosfera do Bairro Alto magistralmente registada no romance de Dinis Machado “ O que diz Molero”), quando descobrem o cadáver do coveiro, o primeiro suicida a entrar em cena. Estamos no Alto Alentejo, mais propriamente em Portalegre. O autor, para efeitos deste romance, é o Cruzeta, voltou à sua infância, aos seus tempos de estudante, vai rememorar situações limite, comportamentos tidos por bizarros ou aberrantes, envolvendo sepulturas, venenos rápidos, enforcamentos. O suicídio é mesmo um pretexto para chegar aos códigos da interioridade: está-se longe de tudo, aí a solidão é miséria, é abandono, é indiferença dos do nosso sangue que partiram para sempre. Quem fica, está marcado por múltiplos estigmas, defende-se com o álcool, esconde os fracassos, embrutece, pratica inverosímeis, injustificáveis crimes passionais. Por vezes, o suicida vem até Lisboa e atira-se da ponte 25 de Abril.
A interioridade vive dos problemas comunitários, das mais desvairadas ofertas para se chegar ao desenvolvimento. O Liceu foi uma oferta dos suecos. É betão e vidro, pelo que no Verão não se aguenta o calor e no Inverno é inferno. Na interioridade as pessoas desesperam perante um tempo que corre sem sentido. A interioridade tem cães gigantescos, filhos repudiados, desafia-se a velocidade, arrisca-se a vida, mata-se porque não há mais a fazer. É o caso do Zé Carlos que esfaqueou a professora Catarina só para que os pais não soubessem que ele mentia acerca de sucessos inexistentes. A interioridade provoca crueldades, as crianças vingam-se nos animais, a urgência dos hospitais enche-se de desastres e os adolescentes desafiam o senhor Bispo a falar da cumplicidade da Igreja com os crimes da guerra colonial.
A interioridade é um estado de espírito, mesmo com bispado, a fronteira de Espanha perto, diversões, agricultores ricos, pobres e remediados, caixas de multibanco, proprietários ricos a ameaçar deserdar filhos blasfemos. Aquela interioridade que nos fala Rui Cardoso Martins tem tapeçarias valorosíssimas, seminaristas que lêem revistas pornográficas ali nasceu o poeta José Duro, viveu José Régio, ali há janelas manuelinas, ali se procura vencer do isolamento graças à Internet.
“E se eu gostasse muito de morrer” não é só escrita primorosa, é um duro libelo onde se manifestam os excluídos de toda a interioridade portuguesa, os que não se matam e enganam o aborrecimento de viver, fantasiando maluqueiras, radicalismos e sucessivos tormentos para desafiar o infinito. De permeio, morre-se de amor, vive-se como um bispo e quando se tem sorte foge-se da parvónia, vem-se até à capital. O romance é uma viagem alucinante aos confins da memória, insiste-se que Portalegre é um pretexto para o autor recuperar a identidade perdida e lembrar-nos que nos confins de Portugal se vive seja o desespero seja a suspirar pela partida. Porque o encadeado de suicídios, corpos mutilados e a exibição de venenos não passam de metáforas: morre-se, gosta-se de morrer porque não se é livre, porque não se pode optar entre ficar e partir. Mas além disso, o autor desenvolve uma tocante elegia, de grande elegância, sobre a infância e adolescência que nos recorda ter existido. Na literatura, como na vida, que sai aos seus não degenera. Lobo Antunes classificou este romance como uma grande promessa. Podemos ir mais longe: testemunha como a língua portuguesa se revigora aprofundando o local com o global, o regional com o universal. Esta interioridade é o tormento que travamos connosco, a acusação de que crescemos no litoral esquecendo mais de metade do país. É uma grande promessa e um grande estímulo para a renovação da nossa escrita, aqui confirmada."
6 comentários:
Confesso que não conhecia, quer o autor e quer o livro.
Costumo habitualmente gostar destes livros de introspectiva social, sendo ela bem feita e não apenas para agitar os media e vender que nem pães quentes. Parecendo-me pelo que li aqui um livro com bom sumo, na oportunidade que tiver, leio-o! :)
Já agora Mike, já lestes alguns dos artigos deste género do Umberto Eco? Muito interessantes!
The Man, assim que tenhas oportunidade lê mesmo que vale a pena. Está muito bem escrito e lê-se muito bem. E as descrições das situações, dos sitios e das pessoas torna-se ainda mais interessante para quem as conhece.
Do Eco apenas li "O nome da rosa", e sobre esta temática não conheço nada.
Abraço.
É um tema muito controverso, ao qual por comodismo, fujo em pensar; talvez um livro ajude...
A dualidade coragem/covardia perturba-me muito.
Recomendo do Umberto Eco um livro chamado "A Passo de Caranguejo".
É uma compilação de artigos que ele fez sobre como a humanidade, ao fim de tanto tempo de existência, parece estar a andar para trás, repetindo os mesmos erros como se nada tivesse aprendido. Muito bom mesmo.
Abraço :)
Pinguim, é fácil fugir ao tema. Por várias razões e em várias circunstâncias faço-o constantemente. No caso concreto do suicídio, desde sempre foi tema recorrente, por ser uma coisa quase "normal" por aqui.
Sem nunca deixar a realidade é sublime a forma como os temas são falados no livro. Se tiveres oportunidade lê.
Um abraço.
The Men, tomei nota. O tema parece-me interessante. Aliás, eu assisto diariamente a esse retrocesso, no meu ambiente profissional.
Obrigado pela sugestão.
Abraço.
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