3 de agosto de 2011

Lambe-Cus

"Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.

Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia. Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores, os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc... Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.
Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada. O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava de um engraxador.

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até ao cu. O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu. Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu. Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing. Os praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.

(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional. O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês."

Miguel Esteves Cardoso, in "Último Volume"

6 comentários:

João Roque disse...

Fundamental para se subir na carreira política, principalmente.

Mike disse...

João, principalmente nessa área.
Mas ontem (e daí o post) fui "ultrapassado" por um culambista e no final ainda fui gozado pelo próprio e por outros por eu não o ter feito.

Sérgio disse...

belo texto de outros tempos, e que continua muito actual.

Mike disse...

sad eyes, salvo erro de 91.
Mas tal como dizes, actual como nunca.

Meia Noite e Um Quarto disse...

"culambismo" neologismo genial!

Na minha faculdade aprendi que se não temos um nome pomposo e reconhecível, só há uma forma de conseguirmos certas generosidades, o culambismo. Curiosamente culambo melhor mulheres do que homens...e ainda assim não sou um expert, de todo. Mas se eu vir que caí na simpatia de uma professora ou professor...eh pá, por muito polémico que seja, o mundo é um lugar sujo e infelizmente muitas vezes temos que nos sujar.
E tu tens mais é que aproveitar a tua personalidade, porque o mérito tu tens, o culambismo só te levará ao reconhecimento!

Mike disse...

00:15, sempre me recusei a ser culambista. Não critico nem deixo de criticar quem o faz..apenas ignoro. Só não gosto que se venham vangloriar depois...acho primitivo.
Sempre achei que devia conseguir as coisas por mérito próprio e não às custas de outros mecanismos.
Tem um (vários) lado perverso; a partir do momento que culambes...passas para o outro lado.
Não obrigado!